06 junho 2006

O folclore como processo estético

por Murilo Souza e Julio C M de Castro


PARA COMEÇO DE CONVERSA

Através deste trabalho pretendemos desenvolver um pequeno ensaio sobre como o conceito de Folclore relaciona-se com o de identidade cultural, definindo-se como processo estético fundamental à continuidade do conceito humano – o homem-idéia – em sua comunidade específica.

MULTICULTURALIDADE x NACIONALIDADE

“Se o mundo fosse uma vila com 100 pessoas...” é com essa frase que se inicia um desenho animado com noções básicas de demografia, dividido em vários tópicos, para crianças. Então, partindo desse princípio, se o Rio de Janeiro (município) fosse uma aldeia com 100 pessoas, quantas morariam próximas do trabalho? Quantas pegariam aquela longa avenida até o centro comercial? Quantas seriam “ricas”? Ou pobres? Quantas morariam em favelas e quantas morariam próximas a pontos de vendas de drogas? Quantas já ouviram falar (ou vivem sob) a lei do silêncio? Não é preciso ir longe para encontrar diferenças culturais gritantes, por quaisquer que sejam os motivos. Diversos grupos sócio-culturais habitam o mesmo organismo-cidade, e a interação entre esses grupos e as diversas características da cidade – não nos esquecendo dos vários meios de comunicação. É desse caldeirão que surge uma profusão de movimentos sócio-culturais, e alguns dialetos sociais (dialeto social é uma idéia é agradável). Mas, se o Rio de Janeiro fosse uma vila com 100 pessoas, quantas teriam escrito “só Jesus expulsa os demônios das pessoas”?

Os cinco pontos principais da identidade nacional, segundo Hall:

· "invenção da tradição";

· ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade;

· mito fundacional;

· narrativa de nação, tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular;

· povo puro, original.

A identidade nacional é um discurso, criado com objetivo de propagar e preservar a ilusão de homogeneidade, de unidade nacional, necessária à manutenção do status quo. Os cinco pontos dessa identidade apresentados são seu fundamento, e o que impede que a sociedade entre em colapso frente às inegáveis diferenças existentes em seu meio, a multiculturalidade presente. Ela prevê a existência de um cidadão típico, válido para todos os territórios e tempos inscritos no ambiente nacional. Tal esforço constitui em reafirmação da cultura “boa”, a cultura da elite, e se estende pela nação através da mídia de massa, educação básica, feriados e festas nacionais. Na medida em que se tem a evolução dos meios de comunicação em massa, a difusão desta idéia de identidade nacional se tornou mais ampla e contundente.

A principal proposta da difusão da identidade nacional é assimilar, agregar a multiculturalidade presente em qualquer sociedade e adaptá-lo para seu próprio molde. Esta difusão no entanto mostra-se incapaz deste feito, pois as identidades culturais são emuladas pelos membros da comunidade, através de processos biológicos como relacionamentos, alimentação e sexo; e estéticos como arte, filosofia e ciência. Estes processos configuram-se como saberes próprios a este grupo específico. A simples realização desses processos pelos membros da comunidade reaviva o ciclo cultural da mesma, reafirmando a identidade cultural. O folclore, neste caso, acaba por representar o principal foco opositor à padronização, uma vez que é a forma mais evidente pela qual as culturas se reafirmam, através de suas diversas manifestações como música, jogos, festas e artesanato.

As razões políticas, sociais e econômicas pelas quais as elites se esforçam para reafirmar a “boa cultura” são muitas, mas não vamos abordá-las aqui.

FOLCLORE É ESTÉTICO?

Como acaba de ser visto, o folclore se caracteriza como o principal foco revitalizador de uma cultura. Não só reafirma o existente como, por sua essência dinâmica, movimenta e transforma a comunidade de acordo com a situação corrente.

A questão é: porque o folclore tem toda esta força, a ponto de ser indestrutível ou inassimilável pela padronização iminente do mundo globalizado? É o que tentaremos responder.

Scott McCloud divide as atividades humanas em biológicas e estéticas. Há atividades que o homem realiza com objetivos biológicos definidos: sobrevivência e reprodução. Estas atividades, tais como trabalho, alimentação, relacionamentos, sexo, todas têm um fundo biológico focado no binômio já citado. Algo trivial como evocar um brinde em meio a uma festa pode ter diversos propósitos ligados a estes objetivos, como impressionar alguém (reprodução), conseguir uma promoção (sobrevivência) etc. No entanto, nas palavras dele mesmo,

(...) Não podemos passar as 24 horas do dia comendo ou fazendo sexo!

Uma idéia que seria bastante interessante, mas sem dúvida impraticável. O que o homem faz quando não está cuidando de sua sobrevivência ou da espécie? Quando não está trabalhando ou cuidando dos filhos? Quando está de folga? Ou simplesmente, quando o chefe não está olhando?

Danças. Folguedos. Artesanato. Música. Poesia. Cordel. Em uma palavra:

Arte.

McCloud define como arte toda atividade humana não-ligada a estes objetivos biológicos primários. Estas atividades poderiam ser também classificadas como de objetivos estéticos, no sentido socrático. A palavra estética parte de stasis, ou vida. Nesse sentido, relacionado à existência humana, do homem-idéia, o homem que vive em uma sociedade composta de mundos sensorial e inteligível. Os objetivos estéticos são de reafirmação desta vida, daquilo que o homem é e aspira a ser. Também se ligam ao desejo do homem projetar sua mente na comunidade em que está inserido - comunicação. E que, obviamente, não tem a ver com os biológicos já citados.

Em seu mais conhecido livro, Marshall McLuhan compartilha desse pensamento:

Creio que deixamos claro que os jogos são extensões de nosso “eu” particular, e que eles se constituem em meio de comunicação. Se se perguntar, finalmente: “os jogos são meios de comunicação em massa? – a resposta tem de ser: “Sim”. Os jogos são situações arbitradas que permitem a participação simultânea de muita gente em determinada estrutura de sua própria vida corporativa ou social”.

Obviamente, o mesmo se aplica às manifestações folclóricas. Através das manifestações folclóricas, o homem reafirma sua cultura, pois é no fazer folclórico que ele participa de uma atividade sócio-economico-religiosa com linguagem criada, definida e sustentada pelos membros dessa mesma cultura. Comunicando-se assim com sua própria cultura, usa o folclore para manter vivo aquilo que lhe é mais inerente. O folclore, portanto, caracteriza-se como processo estético, e é daí que vem essa força que o torna inquebrantável.


BIBLIOGRAFIA

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. 18 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: MBooks, 2005.

MCCLOUD, Scott. Reinventando os quadrinhos. São Paulo: MBooks, 2006.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade (As culturas nacionais como comunidades imaginadas). 7 ed. Rio de Janeiro: Dp&A, 2002.

ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. 14 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. 13 ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.

Um comentário:

Unknown disse...

Maldito trabalho do inferno, boladão da carvena cheio de ódio.